Ferramenta vs. Estratégia: O erro da liderança ao avaliar novas tecnologias
- Fermin Piccolo

- 10 de out.
- 18 min de leitura
Atualizado: há 9 minutos
Em meio a uma explosão de dados sem precedentes, muitas empresas correm para adotar novas tecnologias acreditando que elas, por si sós, trarão vantagem competitiva.
Big Data, Blockchain, RPA e, mais recentemente, aplicações de Inteligência Artificial Generativa (GenAI) surgem como promessas de transformação digital diante desse oceano de informação. O ritmo de adoção é de fato impressionante: globalmente, 78% das empresas já utilizavam IA em 2024 (contra 55% em 2023), e 92% planejam aumentar os investimentos em IA nos próximos três anos.
Por outro lado, a realidade por trás desses números revela um equívoco preocupante na liderança corporativa: a tendência de avaliar e adquirir tecnologia pela novidade ou funcionalidade, mas sem uma estratégia clara e sem alinhamento aos objetivos do negócio.
As consequências desse desalinhamento estratégico são claras. Enquanto mais e mais organizações exploram ou usam IA, a maioria ainda se encontra em estágios iniciais ou experimentais – e aproximadamente metade de seus profissionais carece de treinamento formal em IA. Isso resulta em uso desordenado – o chamado Shadow AI, quando colaboradores utilizam ferramentas de IA sem conhecimento ou diretrizes da liderança. Além disso, apenas 15,9% das empresas brasileiras possuem uma estratégia formal para adoção de IA generativa, evidenciando que a implementação tecnológica frequentemente carece de planejamento estratégico. Decisões tomadas com base em modismos tecnológicos ou deslumbramento por funcionalidades – descoladas de considerações de governança, compliance, gestão de conteúdo, maturidade organizacional e objetivos de negócio – acabam desperdiçando recursos, sobrecarregando a organização com informação pouco utilizável e expondo a empresa a riscos legais e reputacionais.
O que líderes estão errando?
Os líderes nas organizações, pressionados pela urgência da transformação digital e por acompanhar as tendências, muitas vezes incorrem em erros ao avaliar novas tecnologias. Entre os equívocos mais comuns estão:
Confundir ferramenta com solução estratégica: Adotar uma nova plataforma ou software acreditando que, por si só, ela resolverá problemas organizacionais. Essa visão limitada ignora que dados abundantes não se traduzem automaticamente em conhecimento ou decisões melhores – hoje "temos muito mais dados, mas não, necessariamente, mais informação confiável". Sem uma compreensão clara do problema de negócio a ser resolvido, a tecnologia vira apenas um enfeite caro.
Decisões guiadas por modismos tecnológicos: Muitos executivos sentem o FOMO (fear of missing out) de não aderir à última tendência (seja Big Data, Cloud, Blockchain ou IA generativa). O erro está em adotar tecnologias emergentes sem avaliar se a organização está pronta e se há um caso de uso sólido alinhado à estratégia. Por exemplo, houve um “boom” de iniciativas de Big Data seguido pelo “boom” de IA, mas “temos muito mais dados, não necessariamente informação de valor” sem uma gestão adequada. Adoções precipitadas geram projetos-piloto que não escalam ou ferramentas subutilizadas, gerando custo sem gerar valor.
Foco excessivo em funcionalidades e ignorar contexto: Avaliar tecnologia apenas pela lista de funcionalidades ou promessas do fornecedor, negligenciando fatores críticos como integração com processos atuais, aderência regulatória e impacto cultural. Uma ferramenta pode ser tecnicamente sofisticada, porém, sem governança de dados e de conteúdo, acabará alimentando um “pântano de dados” e sem alimentando dele – repositórios desorganizados com duplicidades e versões conflitantes, inviabilizando a rastreabilidade e a confiabilidade das informações.
Subestimar governança e compliance: É comum a reação imediata de “arrumar a casa” – estruturar pastas, padronizar planilhas ou implementar um sistema novo – acreditando que isso é suficiente para estar em conformidade. Essa organização básica é importante, mas sozinha não garante conformidade legal ou qualidade decisória. Por exemplo, muitos gestores supõem que bastaria classificar corretamente os documentos para cumprir a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), quando na verdade a LGPD exige transparência, segurança e responsabilização que vão muito além de pastas bem organizadas. Sem mecanismos robustos de governança, rastreabilidade e controle, a adoção de tecnologia expõe a empresa a auditorias malsucedidas e sanções regulatórias. A LGPD prevê multas de até 2% do faturamento, limitadas a R$ 50 milhões por infração, além da tornar pública a infração e até suspensão das atividades de tratamento de dados.
Ignorar a maturidade organizacional e a preparação das pessoas: Tecnologia de ponta em mãos de uma organização despreparada é receita para problemas. Ainda que haja pressão por rapidez, implementar uma solução sem treinar equipes, sem adaptação de processos e sem cultura de dados gera resistências ou usos inadequados. Vale notar que aproximadamente 50% dos profissionais que utilizam IA no mundo receberam pouco ou nenhum treinamento formal. Dessa forma, líderes que introduzem uma ferramenta sem investir em capacitação criam um gap de competências que pode resultar em uso indevido – como colaboradores usando ferramentas sem orientação, o Shadow AI já mencionado – e em resultados abaixo do esperado.
Esses erros de avaliação levam todos a um ponto comum: a tecnologia é tratada como fim em si mesma, e não como meio para viabilizar uma estratégia. Quando a liderança enxerga a novidade tecnológica como “a solução”, em vez de parte de um conjunto maior de mudanças organizacionais planejadas, ocorrem desalinhamentos que comprometem o valor da iniciativa. A seguir, examinamos em detalhes por que governança, conhecimento e alinhamento estratégico devem preceder a escolha da ferramenta – e como a negligência desses aspectos resulta em desperdício, sobrecarga informacional e riscos.
Consequências tangíveis do descompasso
Os equívocos acima não são meras questões teóricas – eles resultam em impactos concretos para a organização. Entre as consequências de adotar tecnologia sem alinhamento estratégico, destacam-se:
Desperdício de recursos: Investimentos significativos são feitos em licenças, infraestrutura, implantação e consultorias de novas ferramentas, mas o retorno é limitado quando a solução não resolve o problema certo ou não é plenamente utilizada. Sistemas redundantes ou subutilizados aumentam os custos operacionais. Além disso, a falta de planejamento gera retrabalho: processos precisam ser refeitos ou migrados novamente quando se descobre que a ferramenta escolhida não atendia às necessidades de negócio.
Sobrecarga informacional: Sem uma gestão de conteúdo e de conhecimento adequada, a introdução de novas tecnologias muitas vezes amplia o volume de informações sem melhorar a qualidade da informação disponível para tomada de decisão. O resultado pode ser um information overload: dados espalhados em múltiplas plataformas, duplicados e não confiáveis. Com repositórios mal governados, rapidamente se forma um “pântano de dados”, onde localizar a informação correta vira um desafio. Equipes perdem tempo procurando documentos ou confirmando qual é a versão válida de um arquivo, reduzindo produtividade e obscurecendo insights importantes.
Riscos de compliance e reputação: Ignorar governança e compliance na adoção tecnológica pode acarretar violações legais e danos de imagem. No contexto de proteção de dados, por exemplo, a simples organização e classificação não garantem transparência ou segurança exigidas pela LGPD. Falhas em proteger dados ou em seguir normas podem resultar em penalidades severas, além da divulgação da infração publicamente e até suspensão das atividades de tratamento de dados. Tais sanções causam prejuízo financeiro e abalo reputacional. Mesmo fora do âmbito regulatório, uma iniciativa de IA mal conduzida pode gerar vieses ou erros públicos (por exemplo, um algoritmo tomando decisão injusta), arranhando a confiabilidade da marca. Em pesquisa recente, 19,9% das empresas apontaram riscos reputacionais como barreira principal na adoção de IA, evidenciando o medo de adotar sem estrutura e sofrer consequências públicas.
Em suma, quando uma liderança foca na ferramenta e negligencia a estratégia, a organização paga o preço em eficiência, sanidade informacional e exposição a riscos. Nos próximos tópicos, abordaremos como evitar esses resultados, colocando governança, conhecimento e objetivos de negócio à frente na equação da inovação tecnológica.
Governança antes da ferramenta
Ao considerar a adoção de qualquer nova tecnologia, líderes devem ter em mente um princípio fundamental: estratégia e governança vêm antes de ferramenta. Isso significa definir uma ou mais metas, os resultados esperados, um plano de como atingi-las, estabelecer políticas, processos e controles claros antes (e durante) a implementação tecnológica, assegurando que o uso da ferramenta será seguro, conforme às leis e alinhado aos valores e objetivos da organização. Governança não é um obstáculo à inovação – é o que permite inovar com responsabilidade e sustentabilidade.
No contexto atual, a Governança de Dados e de IA tornou-se tão crítica quanto a governança corporativa tradicional. Ela responde a perguntas-chave: Quem pode acessar determinada informação? Quem alterou um documento e quando? Temos trilhas de auditoria? Sem essas respostas, nenhuma ferramenta “mágica” trará tranquilidade. Como apontado em um estudo, auditores valorizam sistemas que registram acessos e alterações; eles analisam mais o processo de tratamento de dados do que o dado em si. Ou seja, não basta ter informações organizadas – é preciso provar controle sobre elas.
Uma armadilha comum é acreditar que implementar uma tecnologia equivale a implantar governança automaticamente. Na prática, tecnologia sem governança vira caos automatizado. Por exemplo, a simples adoção de um sistema de gestão eletrônica de documentos (GED) não garante conformidade à LGPD se não houver políticas de classificação de sigilo, retenção de dados e consentimento definidas. Organizar pastas, nomear arquivos e classificar documentos é importante, mas não atende sozinho aos requisitos de compliance. Isso enfatiza que a adequação à lei exige uma série de etapas estruturadas – mapear o tratamento de dados pessoais, levantar riscos, elaborar relatórios de impacto (DPIA), criar políticas de privacidade, treinar equipes, nomear um encarregado (DPO) e associar compliance a uma análise contínua de maturidade. Não seguir esses passos é operar no escuro: Sem políticas claras, um repositório pode virar rapidamente um pântano de dados, inviabilizando transparência e controle.
A governança eficaz também envolve preparar a organização para riscos emergentes. No caso da IA, os riscos vão desde vazamento de dados confidenciais até decisões algorítmicas enviesadas. Uma publicação da Microsoft salienta que, se a estratégia de IA não estiver ancorada em segurança, privacidade e confiabilidade, a organização se abre a riscos difíceis de mitigar – impactando reputação, compliance e confiança do cliente. Esses não são riscos teóricos; são preocupações práticas. De fato, 80% dos líderes de negócios manifestam preocupação com vazamento de dados sensíveis, e 55% demandam orientações mais claras sobre regulação de IA.
Logo, implementar IA sem um framework de governança é como dirigir um carro esportivo sem freios: pode parecer empolgante no início, mas a falta de controle cedo ou tarde leva a um acidente.
Felizmente, há cada vez mais recursos para auxiliar líderes na criação de governança para novas tecnologias. Frameworks internacionais e modelos de maturidade oferecem diretrizes sólidas. Por exemplo, o Artificial Intelligence Risk Management Framework do NIST (Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos EUA, 2023) e os Princípios de IA da OCDE, adotados por mais de 60 países, estabelecem valores como transparência, segurança, justiça e responsabilidade para sistemas de IA. Esses referenciais enfatizam que projetos de IA devem incorporar mecanismos de governança desde o início, assegurando que critérios éticos e regulatórios sejam atendidos e que haja prestação de contas. No setor privado, empresas como a Microsoft também propõem modelos de maturidade em IA, orientando organizações a avaliarem seu estágio (exploratório, piloto, avançado) e a implementarem controles proporcionais a cada fase. Em síntese, adotar um framework de governança – seja interno ou inspirado em padrões globais – é parte indispensável da estratégia tecnológica moderna. Ele garante que a ferramenta sirva à estratégia, e não o contrário, pois define os limites seguros e eficazes de uso da tecnologia.
Governança robusta traz benefícios mensuráveis. Ela evita inconsistências e retrabalho (todos passam a trabalhar com as mesmas “versões oficiais” de documentos), assegura conformidade ao registrar todas as ações e permitir auditorias tranquilas, prepara o terreno para a IA (algoritmos performam melhor em dados limpos e bem documentados) e eleva a eficiência ao prevenir aquele caos informacional que consome tempo das equipes. Não por acaso, ignorar a governança foi apontado como “a maior surpresa negativa” por gestores que enfrentaram problemas – seja um documento não rastreável, uma política desatualizada ou um histórico de decisões perdido, os efeitos podem incluir custos elevados e até multas.
Em resumo, antes de perguntar “qual ferramenta precisamos?” a liderança deve perguntar “quais políticas e processos precisam estar em vigor para adotarmos essa ferramenta com segurança e eficácia?” e “qual será o valor gerado dentro da visão estratégica da organização?”. A tecnologia deve entrar em um ambiente governado, onde existam regras do jogo. Assim, governança e compliance deixam de ser obstáculos e se tornam alavancas para que a inovação tecnológica traga resultados concretos, sem surpresas desagradáveis.
Conhecimento e conteúdo: do dado à decisão
Outro pilar frequentemente negligenciado pelos líderes ao avaliar novas tecnologias é a gestão de conhecimento e de conteúdo. Em muitos casos, assume-se que implantar uma nova ferramenta – seja um repositório de documentos, um sistema de business intelligence ou um assistente de IA – automaticamente melhorará o uso da informação na empresa. Nem sempre. Sem uma abordagem clara de gestão do conhecimento, a organização pode apenas acelerar a geração de dados, mas não a conversão desses dados em insights e decisões de valor.
É crucial relembrar a distinção básica: dados são registros brutos; informação é o dado tratado e contextualizado; conhecimento é o entendimento obtido a partir da informação, muitas vezes enriquecido pela experiência humana. Ferramentas tecnológicas geralmente operam no nível de dados e informação – elas coletam, armazenam, analisam e até apresentam informações. Mas o salto para conhecimento requer contexto, interpretação e aprendizado organizacional. Portanto, se a liderança não planejar como a tecnologia alimentará a memória organizacional e apoiará a tomada de decisão, corre-se o risco de ampliar o volume de dados sem gerar conhecimento útil.
Um erro típico de gestão é tratar a implementação de um sistema de informação como sinônimo de gestão do conhecimento. Por exemplo, implementar uma intranet corporativa ou um software de wiki não garante que o conhecimento crítico será compartilhado ou retido. Muitas empresas descobrem isso da pior forma quando especialistas deixam a organização e levam o know-how com eles. Capturar o conhecimento tácito (aquele que vive na cabeça das pessoas, nas práticas informais) continua sendo um desafio mesmo com IA. Neste sentido, nenhuma ferramenta substitui a sensibilidade humana para interpretar contextos e tomar decisões éticas. Modelos de IA podem armazenar e replicar padrões de informação, mas há habilidades e entendimentos intuitivos (tácitos) que não se codificam facilmente. Um líder visionário reconhece que tecnologia deve complementar – e não substituir – o componente humano na geração de conhecimento.
Isso não significa que a tecnologia seja inútil na gestão do conhecimento – muito pelo contrário. Ferramentas de IA e automação podem catalisar o processo de transformar dados em conhecimento, desde que os fundamentos estejam corretos. Uma pesquisa recente ilustra um cenário comparativo: nas práticas tradicionais, a memória organizacional tende a ficar fragmentada em silos departamentais, dependente de classificações manuais e taxonomias rígidas; já com IA, é possível integrar grandes bases de dados (data lakes, data warehouses) e aplicar ontologias ou knowledge graphs para organizar informações de forma mais flexível. Além disso, algoritmos de machine learning conseguem identificar padrões e até sugerir novos insights a partir de grandes conjuntos de dados, algo inviável manualmente. Por exemplo, uma IA bem treinada pode vasculhar milhões de registros e revelar correlações que sinalizem oportunidades de negócio ou riscos ocultos. Porém, todos esses benefícios dependem de pré-condições: dados de boa qualidade, conteúdo organizado e acesso controlado. Em suma, dependem de governança (novamente) e de uma estratégia clara de conhecimento.
Um ponto de alerta é a sobrecarga de informação. Sem curadoria e estrutura, mais dados podem significar menos clareza. Um fenômeno conhecido como paradoxo da escolha ocorre quando muitas informações competem pela atenção dos tomadores de decisão, dificultando a identificação do que é relevante. Empresas que adotam múltiplas ferramentas sem integrar fontes de informação veem executivos atolados em relatórios, dashboards e notificações – mas com pouca sabedoria acionável. Aqui, entra a importância de políticas de gestão documental e de conteúdo. Cada nova tecnologia deve ser integrada a uma arquitetura informacional coerente: definem-se responsáveis por conteúdo, ciclo de vida de documentos, critérios de relevância. Por exemplo, classificar informações por nível de criticidade e sigilo – conforme recomendado em manuais de gestão documental do setor público – é uma prática que as empresas privadas também podem adotar, garantindo que uma ferramenta de busca ou de IA respeite essas etiquetas (não exibindo dados sigilosos a quem não deve ver, por exemplo). Isso requer configurar a tecnologia para essas regras e, principalmente, alimentar corretamente o sistema com metadados e controles de acesso.
Um caso ilustrativo está na adoção de IA generativa (como chatbots internos) para responder perguntas dos colaboradores. Se a base de conhecimento por trás do chatbot não foi devidamente curada – se está cheia de documentos desatualizados, duplicados ou irrelevantes – o assistente virtual poderá fornecer respostas incorretas ou inconsistentes, propagando desinformação internamente, sem contar dar respostas a partir de conteúdos que o colaborador não tem autorização de acessar. E pode ser pior: sem um processo de validação humano, corre-se o risco de decisões serem tomadas com base nessas respostas falhas ou indevidamente fornecidas.
Assim, antes de lançar mão da última ferramenta de IA conversacional, a liderança deve garantir que a memória organizacional digital esteja saneada e atualizada. Isso envolve revisar conteúdos, arquivar ou eliminar informações obsoletas e consolidar fontes confiáveis. O conhecimento é um ativo intangível e, se bem capturado e utilizado, pode ser fonte de vantagem competitiva. Logo, investir na gestão desse ativo – com processos e cultura, apoiados pela tecnologia – é tão importante quanto investir na tecnologia em si.
A gestão de conhecimento eficaz requer medir e estimular o compartilhamento e uso do conhecimento. Novamente, tecnologia pode ajudar (por exemplo, sistemas de recomendação de conteúdo, ferramentas colaborativas, analytics para mapear quem consulta o quê), mas a liderança deve incentivar comportamentos. Políticas de reconhecimento a quem documenta lições aprendidas, criação de comunidades de prática, e liderança pelo exemplo (executivos engajando ativamente nas plataformas de conhecimento) são elementos que nenhuma ferramenta isolada substitui. Sem essas ações, corre-se o risco de a melhor plataforma de knowledge management virar uma “cidade fantasma” de páginas não acessadas.
Resumindo, líderes que avaliam novas tecnologias precisam perguntar: “Como essa ferramenta contribuirá para transformar dados em conhecimento útil? Estamos prontos para alimentar e sustentar essa ferramenta com conteúdo de qualidade?”. Se a resposta for duvidosa, é hora de reforçar a gestão de conhecimento – antes, durante e após a implementação tecnológica. Do contrário, a organização pode acabar mais informatizada, porém não mais inteligente.
Maturidade digital e alinhamento com o negócio
Além de governança e conhecimento, um fator crucial na avaliação de novas tecnologias é o grau de maturidade digital da organização e o alinhamento com os objetivos de negócio. Muitos erros de liderança acontecem por desconexão entre a ambição tecnológica e a realidade operacional da empresa. Implementar uma ferramenta de ponta em uma empresa ainda nos estágios iniciais de digitalização é como tentar instalar um motor de foguete em um avião monomotor – a estrutura simplesmente não está pronta para aquele salto.
Uma abordagem prudente envolve diagnosticar o nível de maturidade em vários domínios: gestão de dados, cultura analítica, infraestrutura de TI, competências da equipe, etc. Há frameworks de maturidade desenvolvidos para isso, incluindo específicos para IA. Por exemplo, modelos de maturidade de IA propostos por consultorias e empresas de tecnologia (a Microsoft entre elas) categorizam empresas em etapas como experimento, piloto, estruturada, integrada e inovadora.
Já pesquisas como a MIT Tech Review Insights no Brasil mostraram na prática essa distribuição: 36,7% das empresas brasileiras estão apenas em projetos-piloto de GenAI, 25,7% em integração parcial e apenas 7,9% com integração total – enquanto 29,7% nem iniciaram iniciativas nessa área. Esses números indicam que a maioria ainda está amadurecendo sua jornada, aprendendo a integrar IA aos poucos. Ignorar essa curva de aprendizagem e tentar pular etapas é uma receita para fracasso do projeto ou choque cultural na organização.
Aliado à maturidade digital está o alinhamento com objetivos de negócio. Uma tecnologia deve ser avaliada não apenas pelo o quê faz, mas pelo porquê faz diferença para a estratégia da empresa. Isso exige que a liderança tenha clareza de suas prioridades: crescimento de mercado? Eficiência operacional? Experiência do cliente? Compliance regulatório? Cada objetivo pode demandar soluções tecnológicas distintas. Por exemplo, se a prioridade é melhorar a experiência do cliente, talvez a ferramenta certa seja uma plataforma de CRM com IA preditiva para personalizar ofertas – e não necessariamente investir em robôs físicos de automação fabril. Parece óbvio, mas não raro empresas investem em tecnologias que pouco dialogam com suas metas estratégicas, apenas porque outras empresas o fizeram ou porque “soa inovador”. Frameworks de gestão estratégica, como o Balanced Scorecard ou OKRs, podem ajudar a traçar essa linha de visão: para cada objetivo estratégico, que iniciativas (tecnológicas ou não) são necessárias? O ideal é que toda adoção tecnológica tenha um caso de uso ligado a um KPI de negócio – seja reduzir em X% o tempo de lançamento de produtos, aumentar a satisfação do cliente em N pontos, ou cortar Y reais em custos operacionais. Se não houver essa linha de mira, a chance de a ferramenta virar um corpo estranho na organização aumenta.
Uma consideração importante é a capacidade de mudança e cultura organizacional. Mesmo empresas tecnicamente maduras podem fracassar na adoção de uma nova solução se as pessoas e processos não estiverem alinhados. A liderança deve avaliar: Estamos prontos para mudar nossa forma de trabalhar? Por exemplo, introduzir uma ferramenta de colaboração digital (como Slack, Teams ou plataformas integradas) em uma empresa com cultura extremamente hierárquica e silos pode encontrar resistência passiva – as pessoas continuam se comunicando por e-mail e reuniões, e a plataforma nova vira um “elefante branco”. O alinhamento cultural requer comunicação clara do porquê da mudança, envolvimento dos times na escolha ou customização da ferramenta, e possivelmente ajustes em políticas internas para incentivar o uso (como migração de comunicações oficiais para a nova plataforma). Transformação digital efetiva é, antes de tudo, transformação humana e de processos.
Outro ponto de maturidade é a prontidão de infraestrutura. Uma solução de IA avançada pode demandar poder computacional, integração com bancos de dados legados, segurança cibernética reforçada. A empresa tem essa base? Se não, é preciso contabilizar projetos adjacentes de upgrade de infraestrutura ou optar por soluções cloud gerenciadas que atendam esses gaps. Muitas iniciativas falham por subestimar o trabalho “invisível” de preparar o terreno tecnológico – por exemplo, adotar machine learning sem ter dados integrados ou de qualidade, ou instalar um software sem uma rede robusta, resultando em lentidão e frustração dos usuários.
Quando a liderança leva em conta a maturidade e o alinhamento estratégico, a avaliação de novas tecnologias torna-se mais criteriosa e eficaz. Algumas boas práticas emergem daí:
Mapeamento do estágio atual: Use checklists ou modelos de maturidade para identificar lacunas (por exemplo, falta a política X, não há equipe com habilidade Y, dados não centralizados).
Foco em quick wins alinhados à estratégia: Em vez de tentar resolver tudo com uma única ferramenta milagrosa, priorize iniciativas menores que já caminhem na direção das metas corporativas. Isso constrói confiança e aprendizado para passos maiores.
Pilotos com propósito e métricas: Realize projetos-piloto controlados, com hipóteses claras e indicadores de sucesso. Um piloto deve testar se a tecnologia gera o benefício esperado em pequena escala, antes de escalar. E esteja preparado para “matar” pilotos que não comprovem valor – é melhor falhar rápido e redirecionar cedo do que insistir por orgulho.
Aprendizado contínuo e iteração: Trate a adoção tecnológica como uma jornada contínua. Mesmo após implementar, colete feedback dos usuários, monitore resultados e ajuste a estratégia. O que funciona hoje pode precisar de refinamentos amanhã. Adotar uma mentalidade ágil de melhoria contínua evita o erro de achar que uma implantação bem-sucedida é fim, quando deve ser o começo da captura de valor.
Benchmarking e parcerias: Aproveite lições de outros players do mercado (benchmarking) e considere parcerias com especialistas ou provedores confiáveis. Muitas vezes, envolver um parceiro tecnológico com experiência no seu setor acelera a curva de aprendizado e evita armadilhas comuns.
Em síntese, avaliar a maturidade interna e garantir alinhamento com o negócio traz realismo à empolgação tecnológica. A liderança deixa de buscar “a próxima ferramenta revolucionária” e passa a perseguir soluções estratégicas, onde tecnologia, processos e pessoas evoluem juntos. Essa é a mentalidade das organizações que realmente colhem frutos da transformação digital: elas sabem onde estão, definem onde querem chegar e escolhem como chegar lá combinando estratégia e tecnologia de forma indissociável.
Conclusão
Em última análise, o maior erro que uma liderança pode cometer na era digital é acreditar que a tecnologia, por si só, resolverá seus problemas de negócio. Organização é necessária, mas governança é imprescindível – em outras palavras, ferramentas são importantes, mas uma estratégia bem governada é indispensável.
Em um mundo inundado de dados e repleto de algoritmos poderosos, o diferencial competitivo não está em simplesmente adotar a última tecnologia da moda, e sim em alinhá-la a uma visão estratégica clara, sustentada por processos e valores sólidos.
Para os líderes, a mensagem é direta: coloque a estratégia antes da ferramenta. Antes de aprovar aquele grande investimento em uma nova plataforma ou solução de IA, questione:
Essa tecnologia endereça uma prioridade estratégica da empresa? (Se não, por que estamos realmente considerando isso?)
Temos governança e compliance prontos para acompanhá-la? (Caso contrário, estamos dispostos a implementar as políticas e controles necessários em paralelo?)
Nossos dados e conteúdos estão preparados? (Sem qualidade de dados, nenhuma IA trará respostas confiáveis. Sem gestão de conteúdo, a informação continuará caótica.)
Nossa organização está madura e capacitada para adotá-la? (Precisaremos treinar as pessoas? Mudar processos? Contratar novas habilidades? Quanto tempo isso levará e quais são os riscos da mudança?)
Como mediremos o sucesso? (Quais KPIs indicarão que a adoção teve efeito positivo no negócio? E quais sinais de alerta acompanharemos para detectar problemas?)
Responder a essas perguntas faz parte de uma liderança diligente e estratégica. Aquelas organizações que obtêm sucesso consistente com novas tecnologias não são as que simplesmente correm na frente com qualquer novidade, mas sim as que criam fundamentos para sustentar a inovação. Elas entendem que sucesso com IA e outras tecnologias “depende tanto da estratégia quanto das ferramentas”.
Ao alinhar cada iniciativa tecnológica com objetivos de negócio e implementar governança robusta, a liderança converte a velha dicotomia Ferramenta vs. Estratégia em uma aliança sinérgica: ferramentas corretas viabilizando estratégias bem desenhadas. Os recursos investidos passam a gerar retornos concretos, a informação alimenta insights acionáveis (em vez de sobrecarga), e os riscos tecnológicos são mantidos sob controle, protegendo reputação e garantindo conformidade.
Como chamada para ação, fica o convite para os executivos revisarem seus portfólios de inovação sob essa ótica. Para cada projeto de nova tecnologia em pauta, reavaliar: está realmente a serviço da nossa estratégia ou estamos invertendo a ordem?
Fortaleça comitês de governança de TI/IA, envolva áreas de compliance e conhecimento nas discussões desde o início, e promova uma cultura em que perguntar “por quê?” e “para quê?” antecede o “como?” ao trazer uma novidade tech para dentro de casa.
Em suma, liderar na era digital requer equilíbrio entre entusiasmo tecnológico e rigor estratégico. Empresas que atingem esse equilíbrio transformam inovação em resultados sólidos: usam a tecnologia não como muleta de modismo, mas como alavanca consciente para seus objetivos. E, ao fazê-lo, evitam desperdícios, dominam a informação (ao invés de serem dominadas por ela) e constroem reputações de confiança e pioneirismo responsável. Ferramenta e estratégia, juntas, elevam a organização – mas a liderança deve garantir que a segunda guie a primeira, e não o contrário.

Escrito por Fermin Piccolo
CTO na Arqueum
Especialista com mais de 25 anos de experiência em ajudar empresas a otimizar a governança corporativa e a gestão de documentos por meio da tecnologia.
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Referências
Economy | The 2025 AI Index Report – Stanford HAI https://hai.stanford.edu/ai-index/2025-ai-index-report/economy
Superagency in the Workplace: Empowering People to Unlock AI’s Full Potential (Report) – McKinsey & Company https://www.mckinsey.com/capabilities/mckinsey-digital/our-insights/superagency-in-the-workplace-empowering-people-to-unlock-ais-full-potential-at-work
How Many Companies Use AI? (New 2025 Data) – Exploding Topics (Anthony Cardillo) https://explodingtopics.com/blog/companies-using-ai
O mapa da GenAI no Brasil: da estratégia à implementação – MIT Tech Review Brasil / TEC Institute (2025) https://rd.mittechreview.com.br/tec-report_genai
IA generativa no Brasil: muito papo, pouca ação – VEJA https://veja.abril.com.br/coluna/planeta-ia/ia-generativa-no-brasil-muito-papo-pouca-acao/
Só 7,9% das empresas no Brasil integram IA totalmente e quase 30 ainda não deram o primeiro passo – https://exame.com/inteligencia-artificial/so-79-das-empresas-no-brasil-integram-ia-totalmente-quase-30-ainda-nao-deram-o-primeiro-passo/
Por que “organização” não é o suficiente para passar em uma auditoria? – Blog Arqueum https://www.arqueum.com/post/por-que-organiza%C3%A7%C3%A3o-n%C3%A3o-%C3%A9-o-suficiente-para-passar-em-uma-auditoria
LGPD – Gestão de conteúdo corporativo e governança – Blog Arqueum https://www.arqueum.com/post/lgpd-gest%C3%A3o-de-conte%C3%BAdo-corporativo-e-governan%C3%A7a
The Business Guide to AI Solutions – Microsoft https://info.microsoft.com/ww-landing-the-business-guide-to-ai-solutions.html?lcid=en-us



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